quinta-feira, 29 de março de 2012

A propósito da antiga matriz e cemitério de São Bartolomeu de Arouca, das revoltas passadas e presentes…

Nos últimos tempos, a reboque das intervenções que estão a decorrer no centro da vila, nomeadamente na Praça Brandão de Vasconcelos e nas imediações do Mosteiro, muito se tem falado de património, nomeadamente dos elementos que a intervenção com vista à regeneração tem trazido à consideração. No entanto, muitos têm sido aqueles que se têm servido do que vai aparecendo apenas para sustentar posições políticas e poucos têm sido aqueles que têm aproveitado o ensejo para cavar mais fundo, confrontando e/ou confirmando as teses daqueles que sobre esse património investigaram e escreveram, ousando, assim, ir para além das estórias, oferecendo novos contributos e novas leituras à história da nossa terra e da nossa gente.

Confesso que, apesar de saber que a grande maioria das pessoas não chora de amores por história, pese embora goste de saber das estórias dela, não imaginava que existissem tantas incertezas e tantas dúvidas sobre o passado da nossa terra e, nomeadamente, sobre o que existiu outrora no espaço da actual Praça Brandão de Vasconcelos. Não esperava mesmo a afirmação (e por isso fiquei estupefacto) de que “a existência de um cemitério ali é mais um mito do que outra coisa”, a que se juntou a surpresa pelo aparecimento de ossadas humanas. Estranho mesmo, era que elas ali não aparecessem! Mas, adiante! Modéstia à parte, até porque não sou formado na área, convido a ler ou a reler o artigo que aqui fiz publicar em Setembro do ano passado.

Entretanto, aproveito a oportunidade para cavar um pouco mais fundo, juntando e contextualizando mais alguns dados que me parecem esclarecedores, na esperança de que enriqueçam um pouco mais o debate e contribuam para um maior conhecimento. A afirmação que importa, contudo, faz-se já: Até finais da década de 80 do século XIX, no espaço da actual Praça Brandão de Vasconcelos, para além do cemitério da Misericórdia, junto à porta da respectiva Capela, funcionou a matriz e respectivo cemitério da paróquia de São Bartolomeu de Arouca. Ali se fizeram enterramentos até finais de 1887 e ali se procedeu à celebração regular do culto até 1889.

Assim, dessa forma, mortos e vivos em coexistência pacífica. Mas, coexistiam ali e coexistiam em todas as igrejas e algumas capelas de todas as paróquias do concelho, do país e do mundo cristão, na concretização da ideia de que «o cemitério, dormitório dos mortos, é no seio da Igreja». Então, «deitar à terra o corpo de um cristão a céu aberto, fora das paredes sagradas e longe dos “olhares” dos crucifixos, imagens de santos e do Sacrário, seria um atentado criminoso dos vivos, uma abominável profanação de lesa memória das cinzas dos entes mais queridos».

Refira-se, contudo, que nem sempre foi assim. Até ao século VI, não eram permitidas as inumações dentro das igrejas. Só a partir desse século, se começaram a permitir para imperadores e reis. Mais tarde alargou-se aos bispos, depois aos clérigos e monges, padroeiros dessas igrejas, recorrendo-se também aos claustros quando se tratava de monges ou freiras em mosteiros ou conventos numerosos. No século IX, esta prática generalizou-se a todos os fiéis e até se construíram templos primariamente destinados às sepulturas de grandes famílias, ainda que aproveitados, pela sua grandeza, para celebração regular do culto. Em 1561 houve quem se insurgisse contra tão insalubre costume, mas, aquele era o entendimento maioritário da Igreja e, por isso, era dentro das suas paredes que se sepultavam os cristãos.

A coexistência entre vivos e mortos, no entanto, tinha um pendor para o macabro. Desde logo, abrir uma cova e colocar lá dentro um corpo amortalhado ou um caixão, fazia com que sobrasse terra e, esta, calcula-se, era espalhada no pequeno adro circundante. Como é fácil imaginar, com a terra seguiam ossos e todo um vasto espectáculo pouco agradável. A prática contrastava mesmo com os propósitos referidos inicialmente, a favor dos enterramentos no interior das igrejas.

Por outro lado, atendendo ao primitivo da tradição, uma laje colocada sobre a terra ou irregulares sepulturas escavadas no saibro, a que se chamava taburno, não era suficiente para evitar os cheiros pestilentos lançados pelos mortos. Muitas vezes, nem mesmo a água e/ou a cal que se lançava sobre os caixões e defuntos, de maneira a conter os cheiros, era suficiente.

Não se estranha, pois, que, em face de tal situação fosse emergindo alguma repugnância e contestação. Tímida porém, enquanto a ordem temporal e a ordem espiritual comungavam lado a lado. Não obstante, entre 1805 e 1806 chegou mesmo a ser ordenada a criação de cemitérios murados e isolados para o enterramento dos mortos. Contudo, esta questão não foi nada pacífica e apenas em 1835, altura em que sopravam forte e revoltosos os ventos liberais, se legalizou a questão dos cemitérios públicos e se proibiu aquele velho e enraizado costume dos enterramentos nos templos e adros adjacentes, que, entre outras coisas, comprometia a saúde pública. Proibição que veio a ser Decretada em 28 de Setembro de 1844.


Todavia, mormente nas zonas rurais, aquela proibição foi completamente ignorada, quando não ferozmente combatida. As proporções da Questão haveriam de ficar para sempre simbolizadas pela célebre Revolta da Maria da Fonte. Mais do que revolucionários, os contornos da estória da “Maria da Fonte” foram reaccionários, e terão sido espoletados em 19 de Março de 1846, quando o pároco de uma freguesia de Póvoa do Lanhoso não conseguiu fazer cumprir a nova lei segundo a qual, em nome da higiene pública e para evitar os focos de epidemias, os enterros passavam a fazer-se em cemitérios e não no interior das igrejas. A oposição mais feroz viria a ser protagonizada por um grupo de mulheres, constituindo um movimento colectivo de cariz marcadamente conservador, armadas de foices e gadanhas, que ficou conhecido por Revolta da Maria da Fonte.

Cá pela terra não foi diferente! O novo espírito tardou em chegar, em se instalar e começar a consciencializar. Em Moldes, por exemplo, só em 29 de Setembro de 1883 a Junta de Paróquia, a requerimento do pároco, Padre António Pinto Ferreira de Vasconcelos, deliberou fazer um cemitério provisório, enquanto não se provesse a construção do definitivo e com o intento de acabar com o «desprezo do culto e ofensa da higiene no terreno junto à Igreja». Em Rossas, a mudança de prática tão arreigada também foi algo conturbada. Uma brecha na disposição que proibia os enterramentos no interior das Igrejas, fez com que, entre 1886 e 1890, enquanto se construía o novo e murado cemitério, se fizessem 28 enterramentos no interior da Capela de Nossa Senhora do Campo, sendo também esta solução pouco pacífica. As pessoas da parte alta da freguesia continuavam a exigir ser sepultadas na Igreja, pelo que, nos primeiros meses, se enterraram os da parte alta no adro da Igreja e no seu exterior, em cemitérios provisórios e, os da parte baixa, no interior da Capela de Nossa Senhora do Campo. Talvez para consciencializar e sensibilizar os paroquianos, o próprio abade, Agostinho Tavares de Carvalho, apesar de não ser natural da freguesia, manifestou a vontade de vir a ser sepultado no novo cemitério murado de Rossas. Foi, de facto, em 24.VIII.1897, uma das primeiras pessoas a serem sepultadas no novo cemitério paroquial, inaugurado em 1891, sendo, ainda hoje, o único padre inumado no jazigo reservado aos párocos de Rossas.

«Arouca não tem ainda cemitério, os enterramentos são feitos, como disse, nas igrejas;» fez constar, em 26 de Janeiro de 1867, o Governador Civil do Distrito Administrativo de Aveiro, na visita feita ao Distrito, em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866. No entanto, nessa mesma ocasião, «resolveu porém a Câmara na minha presença construi-lo em local apropriado e que deixei designado.» Pensada, no entanto, estava uma Revolução maior para o centro da vila de Arouca. Os propósitos eram mais ambiciosos e passavam por uma alteração profunda do seu espaço central. Quando chegasse a altura, e uma vez reunidas todas as condições, haveria de se proceder à mudança da matriz para a Igreja Conventual, à demolição da velha Igreja de São Bartolomeu e à remoção dos cemitérios ali existentes. O tempo era agora o de separar o profano do sagrado e os vivos dos mortos. O próprio pároco titular da Igreja de São Bartolomeu, Luís José Pereira de Carvalho e Sousa, revelava-se consciente das insuficiências da sua Igreja e mostrava-se receptivo às mudanças. Não se estranha, pois, que fosse já pacífico o desejo de ouvir o toque a finados nos sinos do Mosteiro. O que viria a suceder em 03 de Julho de 1886, data em que faleceu a última freira, Dona Maria José Gouveia Tovar de Meneses, e se sentenciou, em definitivo, o encerramento do Convento de Arouca.

Volvidos poucos dias, era já repicado e repenicado o toque daqueles mesmos sinos. Ainda não havia passado um ano, já a Paróquia de Arouca solicitava autorização ao Cardeal Dom Américo dos Santos Silva, bispo da Diocese do Porto, para a mudança do Santíssimo Sacramento da igreja de São Bartolomeu para a igreja do Mosteiro. Entretanto, beneficiando da pedra resultante das pequenas e tímidas obras que se iam fazendo nas imediações do adro da matriz, estava já a construir-se um cemitério murado nos limites da freguesia, cujas obras ficaram concluídas em Setembro de 1887. Em Junho de 1889, é concedida autorização à paróquia para estabelecer a sua matriz no templo do Mosteiro. Em Setembro de 1890, a Junta de Paróquia de Arouca, resolve fazer um leilão com os móveis, a pedra do campanário e a tribuna. E, em Fevereiro do ano seguinte, a Diocese do Porto permite a demolição da igreja de S. Bartolomeu.

Em jeito de remate dos actos tendentes a transformar por completo o pequeno centro da vila, em Julho de 1899, José Gomes de Figueiredo Sobrinho e Alberto Brandão de Sousa, o presidente da Câmara e o administrador do concelho, respectivamente, sobem ao Canto do Muro, onde tomam posse das águas do manancial aí existente, comprometendo-se a efectuar obras de reparação, canalização ou construção, a fornecer água ao Mosteiro, já que a este pertencia, e a estabelecer uma Fonte no centro da futura Praça.

Não tardou, materializaram-se ali as ideias reformistas. Ironicamente, ao centro, elevou-se a Fonte! Essa mesma pela qual se levantaram as Marias dos nossos dias, a lutar pelo espaço e pela memória. No entanto, do resultado destas, tal como de muitas das outras, apenas fica a história!

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Notas Bibliográficas:
- BRANDÃO DE PINHO, A.J. (Arouca, 2010) - HISTÓRIA DE AROUCA EM DATAS (Edição Policopiada de 2010);
- BRANDÃO DE PINHO, A.J. - ROSSAS - Inventário Natural, Patrimonial e Sociológico (Trabalho em curso);
- HONÓRIO, Gemma Animae
- RAMOS, José da Rocha (Porto, 1996), COVELO. Ontem e Hoje (Breves Apontamentos para uma Monografia).
- SIMÕES JÚNIOR (Aveiro, 1949), Couto de Arouca / Moldes, Separata do Vol. XV da Revista Arquivo do Distrito de Aveiro.
- Collecção dos Relatórios das Visitas Feitas aos Districtos pelos respectivos Governadores Civis em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866, Imprensa Nacional, Lisboa 1868
- Decreto de 21 de Setembro de 1835, regulamentado pelo Decreto de 8 de Outubro do mesmo ano.

A publicar na próxima edição do jornal Discurso Directo

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom, bem escrito e interessante artigo meu caro António Jorge. Ainda bem que há alguém que se vai interessando pela história da nossa terra, não se ficando pelos britastes politiqueiros... Um abraço do Fernando Pinho.

Anónimo disse...

Fazer analogias entre a Maria da Fonte e o desejo de preservar o que era a Praça Brandão de Vasconcelos é , no mínimo desadequado, mas enfim!!1 Já agora... É assim, e de tal modo é assim, que, caso estivesse de pé a antiga matriz de São '' Bartolameu'' ela não seria, actualmente, demolida... Doutro modo se deverá, digo eu, separar o movimento regenerador que surgiu a partir de 1820, e que levará , mais tarde, à abolição dos foros, e à contrução de uma nova praça na vila de Arouca, e um conjunto de obras fúteis e desconexas e pouco próprias pa´ra o tempo que vivemos...